O ímpeto autoritário, censor e antidemocrático de Bolsonaro não tem limites. Reportagem do site The Intercept Brasil de 6 de junho
revelou que a Abin havia solicitado ao Serpro, o serviço de processamento de dados do governo, acesso a "nomes, filiação, endereços, telefones, dados dos veículos e fotos de todo portador de CNH do país". A farra foi - temporariamente - barrada, já que Bolsonaro voltou atrás após a repercussão da notícia e uma ação no STF.
Hoje, em newsletter enviada aos leitores, a editora sênior do Intercept Tatiana Dias revela uma peculiaridade: o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), um dos braços da espionagem do governo, respondeu ao questionamento de um leitor e tentou defender a medida. A reportagem pode ser lida na íntegra abaixo:
A Abin
respondeu a um leitor do TIB
Publicamos,
há pouco mais de um mês, uma reportagem que mostrou que a
Abin
queria
colocar as mãos nos dados de CNHs de mais de 70 milhões de
brasileiros. Documentos enviados ao Intercept por uma fonte anônima
detalharam que a Agência Brasileira de Inteligência requisitou ao
Serpro – empresa do governo responsável por processar dados –
nomes, filiação, endereços, telefones, dados dos veículos e fotos
de todo portador de CNH do país.
Não é da competência da Abin vasculhar os documentos e
informações de todos os cidadãos. Segundo o próprio estatuto da
agência, seu papel é municiar o presidente da República com
“informações nos assuntos de interesse nacional”. Implantar um
sistema para vasculhar nossos nomes e fotos massivamente, sem levar
em consideração princípios básicos como o direito à privacidade
e presunção de inocência, bem, parece ser apenas interesse do
governo, não do país.
Intrigado, um leitor do Intercept que prefere se manter anônimo
fez um pedido via Lei de Acesso à Informação ao Gabinete de
Segurança Institucional. Ele pediu ao órgão ligado à presidência
e responsável pela Abin mais esclarecimentos sobre as nossas
revelações: quis saber se de fato a agência pediu os dados ao
Serpro e quais são os "interesses nacionais" na coleta e
no arquivamento das nossas carteiras de motorista.
E não é que o GSI respondeu? No documento enviado ao nosso
leitor, o órgão diz que o pedido de acesso aos dados do Denatran
visa, entre outros pontos, "ampliar a capacidade de obtenção e
análise de grandes volumes de dados estruturados e não
estruturados". Isso significa que a Abin tem interesse, sim, em
mecanismos de vigilância massiva – em outras palavras, primeiro
monitorar todo mundo por padrão para depois ver, com a ajuda de
análises computacionais, se há algo errado naquele monte de
informações.
A agência também queria nossas CNHs, segundo o documento, para
"aprimorar a estruturação e o compartilhamento de bases de
dados de Inteligência" e "promover a interoperabilidade de
bases de dados de interesse em nível nacional". As três
justificativas são previstas na Estratégia Nacional de
Inteligência, aprovada em 2017 pelo então presidente Michel Temer,
que determinou as regras de conduta para o órgão no Brasil. Na
época de sua aprovação, especialistas
já alertaram que o texto poderia abrir margem para esse
tipo de vigilância em massa, parecida com a da agência de
espionagem norte-americana NSA, revelada por Edward Snowden.
Não é só a Estratégia que orientou a Abin. Na resposta ao
nosso leitor, o governo disse que o pedido de dados de CNHs está em
"perfeita consonância" com o decreto
10.046, aprovado por Jair Bolsonaro no ano passado. Nós já
falamos dele: foi
a canetada que criou, do dia para a noite, uma megabase de dados
de todos os brasileiros, a ser integrada e usada por todos os órgãos
federais. A ideia divulgada pelo governo é a de desburocratizar –
mas, na prática e sem controle, informações pessoais sensíveis,
incluindo dados biométricos, podem cair nas mãos do governo para
fins que, bem, não sabemos bem quais são. Ou você imaginaria que,
ao entrar na auto-escola, sua foto da CNH cairia nas mãos dos
agentes da Abin?
Segundo o documento enviado ao nosso leitor, a agência garante
que "não realiza qualquer tipo de espionagem ou atentado à
privacidade" e que as requisições são feitas após análise
jurídica. "Uma vez compartilhados, os dados são empregados em
estrito cumprimento das competências legais, para a produção de
conhecimentos de inteligência, visando ao assessoramento das
autoridades decisórias em maior nível hierárquico federal, em prol
da segurança e da estabilidade da sociedade e do Estado", diz a
agência.
O GSI ainda listou até a Convenção das Nações Unidas contra o
Crime Organizado e a Convenção Internacional para Supressão do
Financiamento do Terrorismo na sua lista de justificativas para
colocar as mãos nas nossas CNHs.
Não adiantou tanto malabarismo. A requisição ultrapassa o
âmbito da Abin – tanto é que o caso que revelamos motivou uma
ação do PSB no Supremo Tribunal Federal contra o decreto 10.1046,
usado como fundamentação para o troca-troca de dados dentro do
governo.
Segundo a ação, o pedido de dados de CNHs foi feito sem
transparência e consentimento. "Viola frontal e inequivocamente
o direito à liberdade e à dignidade da pessoa humana bem como, e
especificamente, os direitos à privacidade, à proteção de dados
pessoais e à autodeterminação informativa", diz a ação.
Poucos dias depois da publicação da nossa reportagem, o governo
voltou atrás e revogou a portaria que permitia o compartilhamento
dos dados do Denatran à Abin. Isso fez a Advocacia-Geral da União
pleitear a perda do objeto da ação, ou seja, pedir que o caso fosse
deixado de lado porque o problema central já havia sido resolvido. O
STF negou: o ministro Gilmar Mendes, responsável por julgar o caso,
decidiu manter a ação. "É dever constitucional deste STF
debruçar-se sobre a matéria, evitando-se que situações graves que
colocam em risco a violação de preceitos fundamentais sejam
perpetradas com suposto fundamento no Decreto nº 10.046, de 9 de
outubro de 2019", justificou Mendes.
Como o nosso leitor descobriu, a Abin acha perfeitamente
justificável implantar um sistema de coleta massiva de dados e
análise de big data para fins de inteligência – mesmo que isso
signifique colocar todos nós em constante vigilância, sem nenhuma
transparência. Esse não é um caso isolado – mas reflexo de
governos que, em nome de uma suposta segurança nacional, abrem mão
sem dó de nossos direitos fundamentais. A Abin quer estender seus
tentáculos para cima da gente, com suposto respaldo da lei e da
tecnologia. Mas nós – e isso inclui vocês, leitores – estamos
de olho nisso, e fazendo os poderosos ficarem de olho também. Um
viva aos leitores do TIB!