quinta-feira, 22 de julho de 2021

Quinze anos depois, ele continua correndo de costas na BR-153

Em dezembro de 2005 eu publiquei a crônica "Quando Penso em Seguir em Frente" na versão impressa da Tribuna do Planalto. Era sobre uma figura que eu via quase todos os dias correndo de costas na BR-153. Passei um bom tempo tentando recuperar esse texto - não lembrava que tinha guardado o jornal - para organizar uma coletânea de crônicas. Encontrei recentemente. E, essa semana, após 3,5 anos de retorno a Goiânia, a surpresa: encontrei novamente o corredor às avessas, no mesmo trecho urbano da rodovia. Parei arriscadamente e já lá na frente pra fazer o registro, que obviamente não ficou muito bom. Mas achei muito interessante ver que ele ainda corre por aí.

Abaixo, a crônica.

Quando penso em seguir em frente

Há um rapaz estranho em Goiânia. Porque achamos estranho quem não é como a gente. Quase todo mundo sabe de quem se trata, mas duvido que alguém o conheça de verdade.

É relativamente fácil encontrá-lo. Está sempre, talvez todos os dias, fazendo cooper no acostamento da BR-153, aquela que liga o Brasil de norte a sul.

Não há nada de errado em se fazer exercícios físicos. Dizem os especialistas que faz bem à saúde, ao coração e aos fabricantes de calçados. Aconselham apenas cuidado na escolha do horário: início da manhã, final de tarde.

O nosso corredor, eufemisticamente desgrenhado, mal calçado, às vezes sem camisa, tem uma peculiaridade que o diferencia de todos os outros esportistas: corre de costas. Nosso quase mendigo, talvez quase louco, possivelmente quase normal, usa o perigoso acostamento da rodovia pra sua corrida, talvez diária, de marcha a ré. E sem olhar pra trás – ou pra frente.



Onde quer chegar nosso amigo? É a pergunta que me faço sempre que o vejo, como hoje. (Ele não toma os cuidados aconselhados pelos especialistas. Eram duas horas da tarde, sob pleno sol do cerrado). Estaria fugindo do que o espera?

Alheio às perguntas e à curiosidade dos motoristas que rompem, apressados, o trecho urbano da BR-153, ele segue sempre em frente – ou pra trás. Mãos, braços em movimentos ritmados, largados pra trás, como que tateando o caminho que ele não vê. Há os que não podem enxergar. Ele optou por não ver.

Pro atleta solitário as coisas nunca estão se aproximando. Tudo vai ficando distante. Ele não espera nada, apenas se despede. A fome que passou ontem ficou lá atrás, em frente ao estádio. Na curva do shopping descansa a última indiferença. Derrapa na pista molhada a vida que não existiu.

Aquelas mãos jogadas pra trás, em compasso binário, ditam o ritmo cadenciado da corrida. Corrida a favor e não contra o tempo. Há pressa nesse caminho?

Os carros passam pro serviço, pra escola, pra São Paulo, pra Belém. Ele permanece indiferente, sempre o mesmo ritmo. Não há preferência no sentido. Mas há que se lembrar: ele sempre segue pra onde nunca chega.

Um dia vou perguntar ao nosso homem o motivo de correr pra trás. Caminharia ele assim também? O que me responderia o atleta às avessas? Diria que correr pra trás é melhor do que seguir em frente e não chegar a lugar algum?

Eu, que sempre pensei ter andado pra frente, pergunto-me se, assim como nosso amigo, não tenha sempre corrido pra trás.

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